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A felicidade tem a natureza da ignorância?



O fim do ano tem sido fantástico para os cinéfilos amantes da ficção. Primeiro veio o Dune e esta semana estreou Eternals (Eternos). Dune é melhor: Mais suspense e envolvimento, cativa o espectador e tem uma história robusta. Nos Eternals aparecem logo uns gajos a voarem e ficamos sem surpresas muito cedo. Tudo é mais previsível, excepto na luta entre o bem e o mal, é claro, pois não se sabe quem poderá ganhar.


Ambos os filmes contêm elementos religiosos e também incluem o arquétipo da viagem do herói, não fosse esse um paradigma campeão de audições: O ator até é bonzinho, passa por um mau bocado e é quase derrotado, mas no fim dá a volta e sai vencedor. O herói ganha e o público concorda, o mundo é feliz de novo.


Contudo, a luta entre o bem e o mal, a vida no além, hierarquias cósmicas e ontologia, vida depois da morte e origem de tudo, entre outros temas, são referidos no Dune e no Eternals, mas numa linguagem diferente da religiosa. Acho que é a razão principal pela qual eu sempre gostei de ficção científica, desde miúdo.


O religioso/misterioso é perspectivado como tecnológico e científico. Há uma aproximação de mundos tão diferentes. Esta semana li, em qualquer lado, já não me lembro onde, que “onde termina a ciência começa o mistério” e sem dúvida alguma que o cinema de ficção científica tem essa capacidade de aproximar a ciência do mistério.


Corre-se o risco, no futuro, de sermos quem imaginarmos que podemos ser! Mas para muitos é um risco a evitar. Dá trabalho, a contemplação não gera lucro nem popularidade. Mais vale curtir a felicidade da modernidade líquida. O que está a dar é ser feliz: Há até quem venda os segredos da felicidade pós-moderna. O negócio vai de vento em popa. Por exemplo, no yoga, ouve-se frequentemente os interlocutores pregarem que no longo prazo prática traz a felicidade. Desculpem lá, mas não concordo. Depois de 30 anos de prática não sou mais feliz, mas aprendi a sofrer menos na medida que que aprendi técnicas e éticas de vida.


De volta ao Eternals. Algures no filme alguém afirma que a felicidade é da natureza da ignorância. Não foram exatamente estas as palavras, mas o que interessa aqui é o conteúdo, a ideia principal. Fez-me logo lembrar a máxima budista de que Nirvana é Samsara. Não sou budista, mas até nutro alguma simpatia metafísica por essa cosmovisão indiana. Já a doutrina do Samkhya no texto karika, cosmovisão que está na base do yoga de Patañjali, afirma algo semelhante: A etapa última da consciência é para lá da felicidade, caracteriza-se pela ausência do sofrimento.


Enquanto existir felicidade, existe a possibilidade da experimentação da polaridade ou o seu oposto. Portanto, a soteriologia de algumas cosmovisões indianas (religiões, para os ocidentais) implica que sofrimento e felicidade são polaridades possíveis de ultrapassar. Exceção para o vedanta não dual onde se afirma que a natureza do Espírito é felicidade ou satchidananda.


No final de contas, a posibilidade de nos livramos das nossas ideias, de esvaziarmos os conteúdos mentais apriorísticos, de reduzir o chitta vritti ou flutuações mentais - incluindo a ideia de felicidade, poderá evitar o próprio sofrimento essencial de que todos nós padecemos: A ignorância sobre a natureza do que é natural, que é espírito e é eterno.


Paulo Hayes

Sintra, 7 de novembro 2021

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1 commento


Abdul Jussub
Abdul Jussub
07 nov 2021

Excelente texto, talvez faça falta mais este género de reflexões com base na realidade do que vemos na atualidade, como por exemplo um filme, a forma moderna de narrar mitos. Sobre a felicidade e a infelicidade, é possível que a origem da prática tenha sido procurar o alívio do sofrimento existencial. Mais tarde é procurado um alívio de sofrimento físico, e hoje em dia uma forma de alívio de stress. Todos estes alívios serão transitórios, como usar um guarda-chuva. Enquanto usarmos não nos molhamos, e sempre que chover temos de voltar a usar essa ferramenta. Pode-se então observar 2 possibilidades de felicidade. A primeira, condicional (necessita de algo), e a segunda incondicional (não necessita de nada). Sobre a primeira, as…

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